A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 1178/DF, sob relatoria do Ministro Flávio Dino, impôs condicionantes para que entes subnacionais brasileiros — como estados e municípios — ingressem com ações judiciais perante cortes estrangeiras, inclusive quando envolvam repercussões internacionais relevantes.

O julgamento ocorre em meio à tramitação de ações no Reino Unido movidas por prefeituras e vítimas brasileiras contra empresas e sócios envolvidos na tragédia do rompimento da barragem de Mariana — um dos maiores desastres ambientais da história do país.

Embora a decisão esteja formalmente alicerçada no discurso da defesa da soberania nacional, sua redação ampla e ambígua levanta preocupações legítimas sobre o potencial de restringir o acesso à jurisdição internacional por vítimas brasileiras em busca de reparação transnacional.

O que diz a Constituição sobre sentenças estrangeiras?

É certo que o ordenamento jurídico brasileiro já prevê, de forma clara e pacífica, que toda decisão judicial estrangeira precisa de homologação do STJ para produzir efeitos no Brasil, conforme o art. 105, I, “i” da Constituição Federal e o art. 961 do Código de Processo Civil.

Contudo, ao condicionar agora o simples ajuizamento de ações em tribunais estrangeiros à autorização prévia do STF, a Corte extrapola a regra tradicional e avança sobre direitos fundamentais, notadamente:

– o direito de acesso à justiça;

– a autonomia dos entes federativos;

– e a liberdade de buscar mecanismos de reparação internacional, quando o sistema interno se revela ineficaz.

Contra a tese do risco à soberania: o que realmente está em jogo

O argumento apresentado pelo Ministro Flávio Dino — de que ações promovidas por estados e municípios no exterior poderiam resultar em sanções ao patrimônio nacional e violar a soberania brasileira — não se sustenta juridicamente nem politicamente.

Trata-se de uma projeção infundada que confunde ações de reparação de danos legítimos com instrumentos de política internacional ou retaliação econômica.

Acionar tribunais estrangeiros para responsabilizar empresas por danos ambientais e humanos não é um gesto de hostilidade internacional — é o exercício regular de um direito fundamental, sobretudo quando os canais internos não oferecem resposta adequada.

Não se pode aceitar a premissa de que as ações promovidas por municípios brasileiros junto à Justiça britânica — como no caso da barragem de Mariana — configuram ameaça à soberania ou aos “bons costumes”.

Pelo contrário: essas ações representam a busca por justiça em nome de vítimas brasileiras, diante da omissão histórica e da morosidade do sistema jurídico nacional em enfrentar grandes conglomerados econômicos com atuação transnacional.

A autonomia federativa como expressão da Constituição

O que se verifica, portanto, não é um movimento de desrespeito à Constituição por parte dos entes públicos, mas sim o exercício legítimo da autonomia federativa em defesa de direitos fundamentais, inclusive por meio da jurisdição internacional — algo plenamente compatível com os princípios constitucionais da:

– dignidade da pessoa humana,

– reparação integral,

– e acesso à justiça.

A restrição imposta pelo STF tolhe essa atuação legítima e inaugura um precedente perigoso: a concentração da interpretação da soberania nacional nas mãos de um único Poder, que se coloca como o único juiz da legitimidade de iniciativas internacionais — mesmo aquelas pautadas na defesa de vítimas brasileiras.

Nesse cenário, o verdadeiro desrespeito à Constituição não está na atuação desses entes, mas na tentativa de suprimir, por decisão judicial, um direito assegurado tanto pela ordem jurídica nacional quanto pela ordem internacional.

Conclusão

Quando o Estado falha em garantir justiça internamente, buscar reparação fora de suas fronteiras não é traição à soberania — é sobrevivência institucional e humanitária.

O Direito não pode servir à reafirmação do ego institucional.

Ao fim, é preciso lembrar que o processo não existe para servir ao formalismo ou à autoridade, mas para realizar justiça. Sua função social é garantir que direitos concretos sejam protegidos, mesmo quando isso exige olhar além das fronteiras!

 

 

Por: Isadora Loise Mota Oliveira – OAB/AM 10.670

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *